Pensar A Direito | Confissões redentoras

Inúmeras são as notícias que versam sobre abuso sexual e casos de pedofilia na Igreja Católica. Também já o Presidente da República se pronunciou sobre o assunto, fazendo o (menos feliz) comentário que já todos conhecemos. A 17 de outubro, seis de dez inquéritos instaurados por abuso de menores conheceram despacho de arquivamento.

Urge assim dar palco a este assunto e analisar o próprio funcionamento da Igreja.

Sabendo que o abuso sexual de crianças é um crime de natureza pública, punível pelo artigo 171.º do Código Penal com pena de prisão, levanta-se a questão: estará o padre sujeito a sigilo no caso de ter conhecimento, em confissão do perpetrador, da vítima ou de um terceiro, da prática de um crime de abuso sexual cometido contra um menor?

Segundo o artigo 242.º do Código de Processo Penal, só os funcionários, na aceção do artigo 386.º do Código Penal, estão obrigados a denunciar os crimes de que tomem conhecimento no exercício das suas funções.

O Cânone 983 §1 do Código de Direito Canónico estabelece que o confessor não pode denunciar o penitente “nem por palavras, nem por qualquer outro modo, nem por causa alguma”. O sacerdote que violar este sigilo é automaticamente penalizado com a excomunhão. Vozes afirmam que esta insistência na inviolabilidade do segredo da confissão se trata de uma demonstração de que a Igreja não coloca o bem estar e a segurança das crianças em primeiro lugar.

Uma das particularidades mais apelativas da confissão é, certamente, o seu carácter anónimo; o que explica que se digam certas coisas, versando sobre crimes ou não, que provavelmente não seriam pronunciadas em voz alta em qualquer outra circunstância. Para a vítima, a confissão poderá configurar uma forma de falar sobre o assunto sem demonstrar a sua identidade e sofrer represálias por isso, como a vitimização secundária que acontece muitas vezes ao fazer-se queixa destes abusos – o tal “de certeza que não estavas a pedi-las?”. Na verdade, quanto a esta questão poder-se-iam levantar outras – nomeadamente, o que leva a que uma vítima se sinta mais segura em partilhar com um pároco confessor do que com um agente de autoridade com competência para dar início a um processo de investigação – que não serão abordadas de momento. Ainda assim, aceita-se que para os crentes a possibilidade de obter redenção pelos seus pecados, de forma anónima e sigilosa, poderá ser uma mais-valia.

Mas não poderá este ser o caminho para que um perpetrador, que confesse a prática de um crime, se sinta redimido sem enfrentar quaisquer consequências, podendo até continuar a prática de crimes? Se Deus até lhe oferece absolvição, qual o motivo para não voltar a praticar o crime, uma e outra vez?

O Papa Francisco, em 2019, proclama o sigilo sacramental como indispensável, admitindo ainda que nenhum poder humano tem jurisdição “(…) nem pode reivindicá-la, sobre ele.”. É verdade que o Vaticano adotou a Lei N. CCXCVII sobre a Proteção dos Menores e Pessoas Vulneráveis, segundo a qual deve ser apresentada a denúncia sem demoras quando se tome conhecimento de crimes de abuso cometidos contra menores, reforçando o combate a estas formas de violência; no entanto, é de referir que o sigilo sacramental fica salvaguardado. Ou seja, se se tomar conhecimento de ofensas contra menores, em confissão, o sigilo prevalecerá.

Não podendo a absolvição estar vinculada a uma denúncia do crime à polícia, de acordo com o Direito Canónico, deve o confessor, no entanto, convencer o perpetrador a assumir responsabilidade pelas suas ações, nomeadamente entregando-se à justiça.

Ora, tratando-se de um flagelo social que não vê qualquer travão e é cada vez mais trazido à luz do dia, será suficiente, perante uma confissão daquelas, um mero conselho ou uma mera instigação a que se faça o correto?

O artigo 135.º do Código de Processo Penal dispõe que os médicos, jornalistas, ministros de confissão religiosa e demais pessoas, a quem a lei permitir ou impuser segredo, podem escusar-se a depor sobre os factos. Não obstante, o número 3 do preceito referido dá conta da possibilidade de quebra de segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, se o depoimento for imprescindível para a descoberta do crime, se existir necessidade de proteção de bens jurídicos ou se a gravidade do crime justificar essa quebra.

Também o advogado está obrigado ao segredo profissional, ao abrigo do disposto no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados. No entanto, também é verdade que o n.º 4 daquele artigo dita que se possam revelar factos abrangidos pelo segredo profissional se tal for absolutamente necessário, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo. O que, aliás, coincide com o papel do advogado de colaborar com a justiça, de ser o garante dos direitos e liberdades dos cidadãos.

É certo que o papel do confessor assume um caráter espiritual, ao contrário do papel do advogado, mas não faria sentido que o sigilo da confissão tivesse regime semelhante?

Não obstante, vigora em Portugal a Concordata entre a República Portuguesa e a Santa Sé desde 2004, que é soberana nesta matéria: o seu artigo 5.º dita que os eclesiásticos não podem ser perguntados sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério.

Apesar de a Igreja estar separada do Estado e ser livre na sua organização, percebe-se que o direito à integridade pessoal, bem como o direito à infância, consagrados na nossa Constituição deveriam ser mais acautelados pela própria Igreja, conciliando o direito ao sigilo sacramental com as situações limite em que não é possível ou tolerável sequer manter esse segredo, face ao crescimento do número de casos de abuso sexual contra menores no seio da Igreja, sendo que muitos não chegam sequer a ser conhecidos, muitas vezes porque o crime é encoberto pelos pares.

O ideal era, pois, que a Igreja revisse as suas orientações, nomeadamente quanto ao sigilo da confissão; no entanto, sabendo que a lei geral não derroga a lei especial, e consequentemente não se aplica o Código de Processo Penal, ainda há um longo caminho a percorrer.

Filipa Silva

Andreia Teixeira de Sousa

 

*Atualizado a 07-11-2022

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