Há poucos dias, em 06 de Dezembro último, foi publicada a Lei 83/2021, que vem alterar o Código do Trabalho (CT). Por si só, este facto não anunciaria nada de relevante, já que, tendo sido aquele Código revisto em 2009 (pela Lei 07/2009 de 12 de Fevereiro), já sofrera, desde então, 19 alterações. A nova versão, que entrará em vigor no dia 01 de Janeiro próximo, será, pois, a sua 21.ª variante, em (pouco) menos de 13 anos.
Grosseira e generosamente (já que algumas regras do Código do Trabalho aprovado em Fevereiro de 2009 só vigoraram a partir de 2010), direi que cada uma das versões do Código do Trabalho ora vigente durou menos de 8 meses. Fecunda, muito fecunda! – é o mínimo que podemos dizer da acção da Assembleia da República. Se tem, ou não, sido ‘boa parideira’ é assunto que aqui não desenvolverei…
Importante, por ora, é verificar que, em média, de 8 em 8 meses, a lei que estabelece o quadro normativo das relações de trabalho em Portugal muda.
Muda tantas vezes e, no entanto, paradoxalmente, algumas vezes pouco, ou nada, muda.
É este o caso do artigo 199.º-A da versão do Código do Trabalho que vigorará a partir do primeiro dia de Janeiro próximo, referente ao mui badalado ‘Dever de abstenção de contacto’, que reza que “o empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior”.
A um leigo parecerá a imposição de um novo dever às entidades empregadoras. Um novo e progressista dever, aliás. Um verdadeiro remédio para uma praga que afecta muitos e muitos trabalhadores deste nosso país de brandos costumes, até.
Trata-se, porém, de um verdadeiro placebo, sem qualquer acção efectiva. Quer isto dizer que se assemelha a um vulgar remédio que tão-só produz os efeitos (psicológicos) que decorrem da convicção gerada no doente de estar a ser tratado. E, mais, é preciso não esquecer que, nalguns casos, o placebo pode não ser absolutamente inerte e pode até provocar efeitos secundários nocivos para o doente.
Aqui chegados, importa explicar o significado da minha anterior afirmação de que aquele novo artigo do Código do Trabalho se resumirá a um placebo. Vamos lá, então, lembrar o que já dizia a lei, antes desta ultima alteração. O que são, afinal, ‘tempo de trabalho’ e ‘período de descanso’? Como se define o ‘horário de trabalho’? E, já agora, como se estipula o ‘trabalho suplementar’ e que efeitos gera a sua realização?
Por esta ordem (que é a mesma da lei vigente):
Artigo 197.º CT: “Considera-se tempo de trabalho qualquer período durante o qual o trabalhador exerce a actividade ou permanece adstrito à realização da prestação (…)“;
Artigo 198.º CT: “O tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido em número de horas por dia e por semana, denomina-se período normal de trabalho”;
Artigo 199.º CT: “Entende-se por período de descanso o que não seja tempo de trabalho”;
Artigo 200.º CT: “Entende-se por horário de trabalho a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal” e “O horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal”;
Artigo 226.º CT: “Considera-se trabalho suplementar o prestado fora do horário de trabalho” e, ainda, “No caso em que o acordo sobre isenção de horário de trabalho tenha limitado a prestação deste a um determinado período de trabalho, diário ou semanal, considera-se trabalho suplementar o que exceda esse período”.
Mais, nos artigos subsequentes, estão já previstas as condições e os limites de prestação de trabalho suplementar, e, também, os descansos compensatórios e o pagamento a que aquele obriga.
Em suma, a nossa lei laboral já estipulava, antes da dita Lei 83/2021, a obrigação do empregador respeitar o período de descanso do trabalhador e, por isso, qualquer contacto, motivado por razões de trabalho, e havido fora do horário de trabalho, configurava já trabalho suplementar e determinava a obrigação do respectivo pagamento. E a violação das obrigações que decorriam deste entendimento legal já constituía contra-ordenação (grave ou muito grave).
Assim sendo, já havia remédio (e bom!) para o mal que aquele novo artigo 199.º-A propõe tratar, pelo que, para quem lida com esta matéria, não se vislumbra qualquer razão que justifique o uso de um pífio placebo. A não ser que aquela lei-placebo seja apenas – como diz a expressão – para inglês ver… no caso, para português ludibriar.
E, se assim for, se tiver sido receitado (isto é, promulgado) na expectativa do seu efeito placebo, então sim, tem cumprido a sua função – e bem, há que reconhecê-lo. Ainda não entrou em vigor e já pariu notícias várias e até apontamentos humorísticos; no estrangeiro, ainda por cima, como a malta gosta.
O Trevor Noah satirizou a pseudo-revolucionária medida: “So gangsta!”, disse.
Em bom português, direi “Tão pífia!”.
É poucochinho, de facto. E logo nesta matéria. Há tanto para pensar sobre o contexto e as condições das relações laborais, tanto para fazer no sentido de promover maior dignidade na prestação do trabalho. Menorizar os portugueses, tratá-los com placebos, é poucochinho e não mudará nada.
Filomena Girão, Sócia da FAF Advogados
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