Quem espreitar o site da Comissão Nacional de Eleições (CNE), por estes dias, em vésperas de uma eleição cujo processo se adivinha difícil, ali encontrará um pequeno vídeo (identificado como #paradetequeixar) que termina com a seguinte afirmação: [a Comissão Nacional de Eleições] “é um órgão independente que assegura que as eleições decorrem democraticamente e que a nossa escolha é respeitada. Simples, não é!?”
Deveria ser simples, sim.
Sucede, porém, que as eleições legislativas do próximo dia 30 suscitam, por via dos constrangimentos causados pela pandemia Covid-19, questões difíceis de resolver no quadro legislativo vigente.
Como todos sabemos, há, infelizmente, a possibilidade de haver centenas de milhares de pessoas em confinamento no próximo dia 30 de Janeiro. E, perante esta contingência, o Governo pediu um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República para saber se o isolamento no quadro da Covid-19 impede o exercício do direito de voto ou se a obrigação de isolamento poderá ser suspensa para aquele efeito.
A CNE, entretanto, já se pronunciou sobre a referida questão, afirmando que “não há como impedir quem está em isolamento de votar porque este direito está garantido na Constituição”.
E, de facto, à luz da nossa Lei maior, assim é. O direito ao voto está constitucionalmente garantido – é, aliás, um dos pilares basilares da nossa democracia representativa.
De resto, todos nos lembramos ainda da discussão em torno da necessidade da declaração presidencial de ‘estado de emergência’ por forma a tornar possível (admissível à luz da Lei) a suspensão parcial de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Não é por acaso, aliás, que aquele processo exige a audição do Governo e a autorização da Assembleia da República; mas, antes, porque se entende que aqueles direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente garantidos, só podem e devem ser restringidos em situações verdadeiramente excepcionais e, sempre, devidamente escrutinadas.
Tendo em conta que vivemos num contexto brutalmente marcado por uma pandemia há quase dois anos, e considerando, ainda, que nesse período já decorreram dois actos eleitorais, os problemas dum processo eleitoral deveriam ser já conhecidos ou, pelo menos, previstos; e, por isso, deveriam ter sido já antecipada a sua solução (ou, pelo menos, a sua mitigação). Se assim tivesse sido, não estaríamos hoje preocupados com a democraticidade do acto eleitoral do próximo dia 30.
Haverá seguramente muita gente a abster-se. Como sempre, infelizmente. Mas, desta vez, se se mantiverem as regras já anunciadas para o voto antecipado, haverá gente a abster-se contra a sua vontade – todos aqueles que se virem confinados após a data limite consignada para a antecipação do voto (várias centenas de milhar; eventualmente meio milhão de portugueses, de acordo com as estimativas mais pessimistas). Muita gente, com certeza; e, com grande probabilidade, gente suficiente para pôr em causa a veracidade da vontade popular expressa nas urnas. E esta possibilidade/probabilidade é grave, muito grave.
Curiosamente é da Assembleia da República (cuja composição se decidirá na eleição em apreço) a competência para mudar a lei eleitoral. Porém, nenhum dos seus deputados, nenhum dos Partidos com ou sem assento no Parlamento, ninguém suscitou nestes dois últimos anos tal debate, ao contrário do que, naquele mesmo período, sucedeu em vários outros países democráticos, que encontraram alternativas diversas no sentido de garantir a participação de todos os eleitores neste difícil contexto.
Do alargamento dos períodos dos actos eleitorais, à designação de períodos específicos para o voto de populações de risco ou de populações infectadas com este coronavírus, à votação em sistemas de drive-through, foram diversas as soluções adoptadas para evitar constrangimentos semelhantes aos que (só) agora por cá ponderamos.
A ministra da Administração Interna garantiu há poucos dias que o Governo tem preparada toda a logística necessária para as eleições legislativas, qualquer que venha a ser o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República.
Oxalá assim seja! E oxalá as limitações da nossa lei eleitoral e o medo desta infecção que há dois anos nos atormenta não impeçam os portugueses de exercer um dos seus direitos mais importantes.
Certa e sabida de todos é, no entanto, a urgência de discutir a nossa lei eleitoral – e o nosso sistema eleitoral, já agora – por forma a garantir a saúde da nossa democracia representativa… porque uma democracia representativa exige que cada um de nós se sinta verdadeiramente representado e para isso é preciso mais, muito mais, do que aquilo que hoje nos é garantido.
Até lá, #nãoparesdetequeixar!
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